Na década de 1960, Paul van Buren e A. T. Robinson
notaram que “a religião estava fazendo concessões aos titãs da cultura
secular” e, na sua luta para escapar da obsolescência, estava se
tornando mais semelhante à sociedade em geral.
O neopentecostalismo surge num momento em que as
fronteiras entre sagrado e secular estão cada vez mais diluídas. No
esforço eclesiástico de dar sentido ao conteúdo bíblico para as novas
gerações, os tradicionais limites que separavam a igreja de um modelo
cultural secular foram progressivamente apagados, levando a um processo
de nivelamento entre o sagrado e o secular.
As igrejas cristãs contemporâneas reforçam a prática
de sacralizar o profano, o que é visto em eventos como o “Carnaval de
Jesus”, a “balada gospel” ou a “rave gospel”. O sociólogo da
PUC-Campinas, Luiz Roberto Benedetti, entende que essa postura das
igrejas revela que “há, aqui, mais do que transposição, um nivelamento
entre sagrado e profano” (As Religiões no Brasil, p. 132).
Em seu trabalho de reforma espiritual da sociedade,
vemos as igrejas atuais cada vez mais afeitas à mimetização de eventos
musicais seculares. Muitas vezes, elas acabam assimilando o mesmo efeito
de tantos espetáculos de entretenimento: muita música, muito som alto,
muito marketing, muita diversão.
As cidades recebem apenas o impacto de multidões,
movendo-se de um logradouro público a outro, de uma inauguração de
igreja a outra, de um show a outro show. Levados à igreja supostamente
pela música, os novos conversos são deixados à margem do estudo da
Bíblia e sobrevivem espiritualmente pela graça de Deus e pelo poder dos
chavões de cura, unção e prosperidade.
No entanto, vejo que, apesar da sinceridade que possa
existir, muito músico intitulado levita tem brincado perigosamente na
fronteira entre sagrado e profano. Essa fronteira é distinta daquela
entre secular e sacro. O secular pode manifestar valores cristãos
implícitos. O profano revela-se abertamente anticristão.
Veja o que diz a letra de “Ofertório”, de Adriano Gospel Funk:
Tem ofertante dizimista aqui? / Se tem, dá um grito
Tem mão de onça? / Se tem, vai ser queimado agora
Mano para de “caô” e deixa de ser enrolão
Se você não é dizimista “pode crer” tu é ladrão
A canção “Ofertório” apresenta características
ligadas ao funk carioca, como humor descontraído, linguagem coloquial,
tratamento irreverente de temas mais sóbrios e estrutura rítmica
dançante. Em contraste com a seriedade e a solenidade que marcam as
composições feitas para o tradicional recolhimento de dízimos e ofertas
nas igrejas protestantes históricas, essa canção denota uma ambiguidade
que apaga a seriedade da mensagem, já que seu teor humorístico confunde
os limites tradicionais entre sacro e secular, a ponto de não ser
possível definir imediatamente se a canção pretende incentivar ou
satirizar a doutrina.
No mesmo espírito, o hit “Créu” foi adaptado para
“Céu”. É como se batizassem a canção original e agora ela fosse capaz de
emitir significados altamente espirituais e cristãos. Mesmo quem não
pertence oficialmente a uma igreja, se permite fazer uma paródia gospel
de sucessos seculares.
Não culpem os satiristas. Quem começou com isso foram os próprios evangélicos.
O hit do momento “Ai, se eu te pego” tem agora uma
versão gospel chamada “Deus, eu te quero”. O compositor de tal paródia
vai dizer que esta é uma forma de chamar atenção para o evangelho, mas
muitos cristãos dirão que tal versão é mais um episódio do infindável
catálogo de vexame gospel. E mesmo quem não crê no evangelho dirá que se
trata de mais uma performance típica de um evangelicalismo
intelectualmente decadente.
E ainda tem gente que acha que não importa como a
mensagem seja pregada, o importante é pregar a mensagem! Pobre de nosso
evangelismo que perdeu até os bons modos.
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Autor:
Joêzer Mendonça é músico e doutorando em musicologia na Unesp. É autor do blog Nota na Pauta. Fonte: Púlpito Cristão.